A Rede Feminista de Juristas – deFEMde oficiou a Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados para tratar o PL 5.452/2016, a ser apreciado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, pautando 13 pontos principais de atenção.
Em suma, para a continuidade do projeto de lei e maior escopo de proteção das mulheres, a deFEMde propõe as seguintes iniciativas:
- retirada da expressão “conjunção carnal” da redação do crime de estupro: consideramos que, na proposta de nova redação do tipo penal de estupro, bastaria mencionar “atos libidinosos”, pois “conjunção carnal” é uma forma de ato libidinoso. Essa mudança seria benéfica para desassociar o crime de estupro da prática da “conjunção carnal”, que ainda hoje limita a aplicação do tipo penal por parte de muitos operadores do sistema de justiça.
- inclusão da ideia de “consentimento” no crime de estupro: compreender criticamente a noção de consentimento é fundamental para definir o tipo penal de estupro. No debate público já se construiu um consenso em torno da ideia de que o crime de estupro abarca não apenas os casos em que o constrangimento ocorre mediante violência ou grave ameaça, mas também todos aqueles em que não há consentimento da vítima. Embora persista o mito de que o crime de estupro é praticado por um desconhecido, num beco escuro, é certo que a maioria dos estupros ocorre dentro de casa, cometido por pessoas conhecidas, parentes, que mantém relações afetivas com as vítimas. E é justamente em relação a esses casos que a ausência do consentimento se torna ainda mais importante para definir o tipo penal. Vale ressaltar que o consentimento não pode ser presumido e é revogável a qualquer tempo. Se a pessoa não está mais em condição de revogar esse consentimento, já não se trata de um consentimento válido. Apoiamos, ainda, a retirada da expressão altamente equivocada “permitir que com que ele se pratique” presente na atual redação do Código Penal, pois entendemos que esta expressão é incompatível com a ideia de “consentimento”. Ninguém “permite” que com ele se pratique um crime de estupro. Ser constrangido ou não poder expressar consentimento não é sinônimo de permissão.
- inclusão de “violência ou grave ameaça” como agravante do crime de estupro: é importante diferenciar as hipóteses nas quais o crime de estupro é praticado “mediante violência ou grave ameaça” daquelas em que há ausência de consentimento mas não há um desses dois elementos. Sugerimos manter a ausência de consentimento de forma explícita, como elemento do crime de estupro, e especificar a agravante relativa aos casos em que há “violência ou grave ameaça”.
- consideração de todas as formas de violência como agravante do tipo de estupro: a forma mais cruel da prática do crime de estupro não é a sua forma menos frequente, por uma pessoa desconhecida, em um beco escuro, mas justamente por uma pessoa próxima, que inflige sobre a vítima diversas formas de controle sobre o seu comportamento sexual mais eficazes do que a própria violência física. O erne do crime de estupro é a ausência de consentimento – que não pode ser resumida ou equiparada à ocorrência de violência ou grave ameaça. A hierarquização da forma de violência física como sendo mais gravosa do que as demais formas de violência já foi superada pela Lei Maria da Penha. optamos por deixar de forma expressa no tipo penal diversas formas de violência que se somam à violência sexual comum a todos os casos poderiam ser consideradas como agravantes do crime de estupro: física, psicológica, patrimonial ou moral, que se somam à violência sexual comum a todos os casos.
- exclusão da agravante de estupro mediante extorsão virtual: por que, por exemplo, um crime de estupro mediante ameaça de divulgação de “nudes” deveria ser considerado mais grave do que um estupro mediante ameaça de morte? Acreditamos que este parágrafo deve ter uma apenas função descritiva, que oriente a aplicação da lei ao determinar que a extorsão virtual deve ser considerada como grave ameaça, violência psicológica ou moral. Entendemos ser relevante que haja essa previsão legal, mas discordamos que deva ser uma causa de aumento de pena.
- novo tipo penal sobre divulgação de cena de estupro, de sexo, nudez ou pornografia: a mistura de tipos penais tão distintos do ponto de vista das práticas, do impacto na vida das vítimas e dos elementos que se devem levar em consideração acaba por tornar nebuloso o objetivo pelo qual se pretende tipificar a disseminação não consensual de imagens íntimas, cujas bases factuais são de simples verificação: se não houve consentimento, a imagem não poderia ter sido disseminada. Assim, sugerimos a exclusão da parte “ou que faça apologia ou induza sua prática”. Não faz sentido tratar práticas diferentes conjuntamente, inclusive porque a interpretação posterior pode se basear em uma visão sobre o objetivo do tipo penal e levar à desconsideração de casos em que um elemento, como a imagem disseminada constituir um crime, não esteja presente. O ideal seria separar as previsões. A disseminação não consentida de imagens íntimas é uma prática infelizmente comum e que pode ganhar um regramento próprio, inclusive pela centralidade que o consentimento deve ter na análise dos fatos. A exclusão de ilicitude para o caso de imagens divulgadas por jornalistas (§2º) reforça uma prática reprovável e lucrativa dos veículos de imprensa: a da construção de personagens e exploração da imagem dos envolvidos de forma apelativa e agressiva, que não tem compromisso com a cobertura informativa a respeito de um determinado tipo de crime (causas, dados etc.). Essa excludente não pode ser vista como um passe livre para publicizar o conteúdo de imagem da vítima.
- novo tipo penal sobre induzimento, instigação ou auxílio a crime contra a dignidade sexual: a criação desse novo tipo penal, que incide sobre todos os crimes contra a dignidade sexual, provoca uma grave desproporção de pena na sua aplicação. Os crimes contra a dignidade sexual vão além do delito de estupro. Prever a mesma quantidade de pena para quem induz, auxilia ou instiga o cometimento de um estupro de vulnerável (cuja pena prevista é de 8 a 12 anos) ou de uma violação sexual mediante fraude (cuja pena prevista é de 2 a 6 anos) provoca uma grave incoerência no Código Penal.
- exclusão do parágrafo de redução de pena de estupro de vulnerável se não causar grave dano psicológico ou físico à vítima: não há como considerar que um estupro cometido contra vulnerável não cause grave dano (seja físico ou psicológico) à vítima. Estamos tratando de uma violação sexual praticada contra menores de 14 anos! Se há um tipo penal específico prevendo uma pena maior levando em consideração quem é a vítima, já se pressupõe o maior dano causado. Mesmo antes da reforma de 2009, já existia essa presunção de estupro de vulnerável, quando a vítima era menor de 14 anos. Logo, esta proposta de novo parágrafo configura um imenso retrocesso na matéria.
- exclusão do parágrafo de excludente de ilicitude do crime de divulgação de imagens em casos de estupro de vulneráveis: a excludente de ilicitude do crime de divulgação de imagens em casos de estupro de vulneráveis é inadmissível. Além de todos os comentários já feitos a respeito da prática da imprensa de explorar economicamente imagens de pessoas vítimas de violência sexual, quando o crime é cometido contra uma criança menor de 14 anos, não existe qualquer cenário em que a divulgação de “fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza sua prática, cena de sexo, nudez ou pornografia” seja minimamente legal.
- previsão de ação penal pública incondicionada nos crimes contra a dignidade sexual: o sistema de justiça, como está desenhado hoje e na forma como funciona, atende apenas à “vítima ideal”, aquela que consegue, após sofrer uma violência, enfrentar uma série de procedimentos (realizar exame médico, Boletim de Ocorrência, buscar assistência jurídica) para então conseguir dar início a um novo périplo que será o da desgastante ação penal. Tudo isso em um exíguo prazo de 6 meses. Observamos que dificilmente essas vítimas conseguem lidar emocionalmente com a violência que sofreram e buscarem respostas jurídicas em tão pouco tempo. Defender que a ação seja pública incondicionada também acompanha a linha do entendimento sedimentado pelo STF em 2012, relativamente à Lei Maria da Penha, no qual a maioria dos ministros manifestou-se pela inconstitucionalidade do artigo que determinava que as ações penais daquela lei eram públicas condicionadas à representação da ofendida, por considerarem que ele esvaziava a proteção constitucional assegurada às mulheres que, nesse contexto, encontram-se fragilizadas. Exigir que a vítima tenha forças para representar e resista a não se retratar por pressão (social ou do agressor), enfraquece a proteção que se pretende dar e impõe mais uma obrigação a ela.
- agravante em relação ao local (público ou ermo) e horário (noite) do crime de estupro: novamente, vemos entrar em ação o mito de que o crime de estupro é praticado por um “agressor desconhecido em um beco escuro”, sendo que boa parte dos delitos sexuais são cometidos por pessoas que a vítima conhece, em locais privados (“entre 4 paredes”). Entendemos que a previsão como agravante do crime de estupro o fato de ele ter acontecido em um “local público” ou “durante a noite” transmite uma mensagem equivocada de que o crime cometido em local privado e à luz do dia seria menos grave. Já a previsão do aumento pelo emprego de “qualquer meio que dificulte a possibilidade de defesa da vítima” entendemos ser interessante.
- agravante em relação à prática reiterada ou sequencial de crime sexual: entendemos ser necessário destacar que este dispositivo pode ser aplicado desde que não esteja configurado concurso material, concurso formal ou crime continuado, pois da forma como está escrito, permite a aplicação de uma pena final mais branda se comparado, por exemplo, com o concurso material do art. 69 do Código Penal.
- agravante quanto à prática de crime sexual contra pessoa com uso de substância psicotrópica: este dispositivo é problemático na medida em pode abarcar casos nos quais a vítima foi estuprada enquanto estava bêbada ou com sua capacidade de resistência diminuída – os quais, conforme a redação atual, se enquadrariam no crime de estupro de vulnerável. O atual art. 217-A, §1º, estabelece que comete estupro de vulnerável quem pratica as ações ali descritas com alguém que, por qualquer causa, não possa oferecer resistência. Apesar do dispositivo do PL estar entre as considerações gerais dos crimes contra a dignidade sexual, poderá se sobrepor, na aplicação prática, ao atual § 1º do art. 217-A. Assim, mantendo-se este dispositivo no PL, é importante inserir um parágrafo ao art. 217-A para dispor que na mesma pena incorre quem pratica os atos descritos no caput contra pessoa incapacitada, de forma parcial ou total, de oferecer resistência, ainda que tal incapacidade decorra de ingestão voluntária de substância alcoólica, farmacêutica ou psicotrópica.
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